domingo, fevereiro 26, 2006

Memórias de um não folião

Eu abomino carnaval. A minha idéia de inferno? Ter que assistir eternamente a desfiles de escolas de samba na avenida. Se alguém quiser me torturar e arrancar meus segredos mais íntimos, é fácil. Basta me amarrar e me fazer ouvir por alguns minutos um CD de samba enredo. Depois de umas três daquelas músicas repetitivas e insuportáveis, eu confesso minha participação no esquema do mensalão, reconheço minha culpa na conspiração para matar Kennedy e admito que ajudei nos atentados de 11 de setembro.
Minha aversão pelo carnaval começa pelos carros alegóricos. Onde os comentaristas da Globo vêem beleza e criatividade, eu enxergo apenas mau gosto e breguice. Nada mais kitsch do que a águia da Portela.
Os temas escolhidos pelos carnavalescos são sempre originais e imprevisíveis. Quantas vezes você já viu alguma escola de samba mostrando o sofrimento dos negros no Brasil? As belezas naturais do país também estão sempre lá, assim como homenagens constrangedoras a personagens históricos. Neste ano, duas escolas falam de Santos Dumont. Mas há também as que preferem ousar. Uma escola de São Paulo, por exemplo, decidiu tratar dos 250 anos de nascimento do Mozart. Pobre Wolfgang. Nem Salieri pensaria numa vingança tão horrível.
Mesmo com temas tão diferentes, os desfiles me parecem sempre iguais. Se alguém me mostrar um teipe da Beija Flor de 1977 e um da Portela de 2003, eu não vou notar nenhuma diferença. Eu sempre fui democrático no meu gosto carnavalesco. Torço para que todas as escolas percam, o que, infelizmente, é impossível.
Há uma coisa que me intriga. Os desfiles ocorrem apenas uma vez por ano e as escolas se preparam por vários meses, mas ninguém consegue impedir que muitos carros alegóricos quebrem na avenida. Parece a ala das baianas. Não vale ponto, mas tem que fazer parte do desfile.
Eu também fico emocionado com os motivos pelos quais as escolas escolhem os enredos. No ano passado, a Mangueira falou de energia, um tema com apelo popular, que por acaso contou com patrocínio da Petrobras. Neste ano, uma escola do Rio, que vai tratar da integração latino-americana, recebeu uma graninha da PDVSA, a Petrobras da Venezuela. Eu também acho muito interessante o esquema de financiamento das escolas, que ganham dinheiro público repassado pelas prefeituras – e acho que também pelos governos estaduais – à liga das escolas de samba. Não é bonito o Estado colocar dinheiro em instituições que estão nas mãos de bicheiros e traficantes?
Mas eu não vejo tudo no carnaval com mau humor. As entrevistas com Jamelão, com seus 355 anos, são sempre impagáveis. Algum repórter irá perguntar a ele inevitavelmente como é ser puxador de samba na sua idade, e Jamelão dará uma patada no coitado, dizendo que não é puxador, mas intérprete. Os comentários de Lecy Brandão também são imperdíveis, sempre lembrando a importância da comunidade em cada desfile. E eu também acho maravilhosas as brigas na apuração dos resultados, em que os integrantes das escolas perdedoras choram e tentam agredir os jurados.
Eu sinto falta de apenas uma coisa relacionada aos folguedos momescos: a transmissão dos bailes de carnaval pela Bandeirantes. Na minha adolescência, era uma das poucas oportunidades em que eu podia ver mulher pelada em movimento. A outra era na Sala Especial, da Record. Eu sempre abominei carnaval, mas, quando era adolescente, com hormônios em ebulição, tentava não perder um baile. Os meus amigos, pelo menos, garantiam que eu veria um nível de sacanagem que faria Sodoma e Gomorra parecer recreio do jardim da infância. Vi muita baranga mostrando os peitos e milhares de closes de bundas cheias de celulite, mas nada que se aproximasse dos bacanais vistos – ou inventados – pelos meus colegas.
E eu aproveito o clima nostálgico para fazer uma confissão. No começo da minha adolescência, meu sonho era ir algum dia à Ilha Porchat e participar da Noite nos mares do sul. Para mim, era o máximo de devassidão a que o homem poderia aspirar. Como nunca fui à Ilha Porchat e não conheço ninguém que tenha ido, eu vou morrer sem saber se meus sonhos de luxúria correspondiam à realidade. Paciência!



5 Comments:

  • Eu acho que pra gostar de desfile de escola de samba é necessário se transformar em turista. Imaginar-se um sueco vindo ao Brasil pela primeira vez. Arregalando os olhos na avenida tanto com as cores quanto com as bundas. Suspeito que pra mudar de idéia nisso é necessário passar um tempo numa Siberia da vida e voltar 20 anos depois. Eu sempre vi o carnaval com os seus mesmos olhos. Hoje mudei um pouco de idéia, mas me nego a escutar samba (porque ninguém é de ferro). Por outro lado, eu era capaz de assistir até Clube do Bolinha com tal de ver aquelas mulatas rebolando. Ser brasileiro é viver nessa contradição entre o kitsch e o profano. Boa folia pra você também!

    []s

    By Anonymous Anônimo, at 1:05 AM  


  • Eu achava São Paulo uma bosta. Mas é uma ótima cidade para passar o Carnaval, quando fica quase deserta.

    btw, caro Matamorros, copiei a comissão de frente e uns carros alegóricos de seu desfile para o Copy & Paste.
    http://copy-paste.blogspot.com/

    obrigado,

    By Blogger Ratapulgo, at 6:04 AM  


  • Pensava exatamente sobre isso ontem à noite, quando o "batincundum" da TV do vizinho estava se tornando insuportável... Todo ano, tudo igual... assim como o nosso sistema político-eleitoral... Ah, estive no Ilha Porchat algumas vezes... a "devassidão" só tinha vez quando presentes no recinto pessoas da mídia, fotógrafos,etc... nada tão diferente dos bailes transmitidos pela TV na semana que antecede o carnaval. Abraços

    By Anonymous Anônimo, at 9:07 AM  


  • Ô, Marcos. Um dia eu confesso o mico que paguei - junto com um mês do salário de inglich-títcher - ao me meter no Ilha Porchat. Você, de fato, não sabe o que perdeu.

    By Blogger mauro, at 10:55 PM  


  • Fernando,
    "Ser brasileiro é viver nessa contradição entre o kitsch e o profano" - definição perfeita

    Ratapulgo,
    São Paulo fica bem razoável no carnaval, ainda que provavelmente uns 19 milhões de paulistanos continuem por aqui. Eu é que agradeço por você ter colocado o post no Copy and paste

    Giulia e Mauro,
    Vocês têm a obrigação de escrever posts sobre a experiência no mundo da devassidão no Ilha Porchat

    Abraços a todos,
    Marcos

    By Blogger Marcos Matamoros, at 5:03 PM  


Postar um comentário

<< Home

Autores

* Marcos Matamoros
* F. Arranhaponte


Links

* Alexandre Soares Silva
* Chá das Cinco
* Diacrônico
* Filthy McNasty
* FYI
* JP Coutinho
* Manobra, 1979
* Número 12
* puragoiaba
* Roma Dewey
* Smart Shade of Blue
* Stromboli e Madame Forrester


Posts Anteriores

Bum bum paticumbum ziriguidum II
E por falar em suicídio II
Patriotismo II
Esses artistas plásticos brasileiros e suas obras ...
Curling, esporte de multidões
Pain avec merde*
A insuperável clareza de nossos intelectuais II
Diálogo brasileiro V
Diálogo brasileiro II
Fanatismo nunca mais ou em busca da fatwa V


Arquivos

setembro 2005
outubro 2005
novembro 2005
dezembro 2005
janeiro 2006
fevereiro 2006
março 2006
abril 2006


Powered by