quinta-feira, janeiro 12, 2006

Ao mestre, com carinho

Há exatos 17 anos, eu entrei na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Não posso negar que estava empolgado. Eu acreditava que, na média, os professores seriam razoáveis, e que uma meia dúzia de três ou quatro seria brilhante. Se o sujeito dá aula na USP, pelo menos uma anta não deve ser, pensava o ingênuo Matamoros. Mas, como sabem todos os que passaram pela ECA, a realidade é um pouco diferente. Com boa vontade, eu diria que a média dos professores era ruim. Boa parte era péssima mesmo.
Mas havia algumas exceções. Neste post marcado pela nostalgia, vou evocar a lembrança de um deles, um verdadeiro intelectual, que ensinou quase tudo o que eu sei: o professor Sansão, sósia do cantor Ovelha. O visual já impunha respeito, deixando claro que estávamos diante de um homem com uma mente privilegiada. Além da cabeleira loura, o mestre também chamava atenção por usar chapéu de safári e camisas parecidas com as do Magnum.
Pode parecer fútil descrever o visual do professor, mas eu gostaria de lembrar que a forma é indissociável do conteúdo. Sansão era um intelectual, e eu ousaria dizer que era um intelectual iluminista. Em suas aulas, discorria com naturalidade sobre qualquer assunto.
Literatura, por exemplo, era um tema que Sansão dominava profundamente. Uma de suas alunas queria fazer uma entrevista com o escritor de “O alquimista”, no ano em que o livro estourou. Mostrando conhecer como poucos a literatura brasileira, Sansão fulminou sua discípula: “Mas como? ‘O alquimista’ não é um livro do Machado de Assis?” A estudante, como não podia deixar de ser, ficou sem ação diante de tanta sabedoria.
O mestre também dominava a literatura inglesa. Em uma aula memorável, recomendou a todos o livro “Furo”, da “escritora” Evelyn Waugh. Em outra de suas palestras, discorrendo sobre distopias, fez uma percuciente análise de 1984, referindo-se várias vezes “ao livro do Orson Welles”.
Mas Sansão não se limitava a ser um pensador. Não, ele também era um homem com conhecimento prático, que sabia como funcionava o mercado de trabalho. Para evitar que subestimássemos essa sua faceta, ele nos advertiu várias vezes: “Não quero que vocês pensem que o Sansão – ele gostava de falar de si mesmo na terceira pessoa – é um mero intelectual”.
Sansão conhecia tão bem a língua que desafiava as convenções gramaticais. Uma de suas marcas registradas era o uso subversivo do subjuntivo. Era difícil uma aula em que não se ouvissem termos como “seje”, “teje” e “veje”.
Eu não sei o que faz hoje da vida o professor Sansão, mas tenho certeza de apenas uma coisa: onde quer que ele esteja, está disseminando conhecimento e transpirando cultura. Quem o teve como mestre não esquece

PS: Todas essas histórias são verdadeiras. Eu não inventei nada



11 Comments:

  • É verdade. Ele não inventou nada. O referido é verdade e dou fé.

    By Anonymous Anônimo, at 1:49 PM  


  • Caro Matamoros,
    As passagens por você apresentadas, infelizmente, refletem uma realidade comum a qualquer faculdade de comunicação no Brasil.
    Tendo freqüentado a Cásper num período mais recente - entrei lá há apenas 6 anos -, percebi que a formação dos "mestres" continua coxa (para citar o autor que Sansão pensou ter produzido o Alquimista).
    Detalhe que estive na Cásper ainda no tempo das figurinhas carimbadas. Muitas delas com a fama de Romário e o conteúdo de Tupãzinho.
    Enfim, registro aqui suas sábias -infelizmente, ao que parece, eternas - palavras transmitidas a mim quando ainda escolhia o curso de jornalismo a fazer: "todas as faculdades são uma merda, escolhe a mais barata."

    By Anonymous Anônimo, at 2:58 PM  


  • Se me permite, gostaria de lembrar mais um episódio do nosso querido Sansão: aí por 1990, 1991, uma colega fez o roteiro de um videodocumentário sobre rock brasileiro, e propôs uma entrevista com Renato Russo. Sansão, que não era bobo nem nada, antenado com as últimas notícias de uns 10 anos antes, rebateu: "Mas quem é esse Renato Russo? Se você quer falar de rock, tem de falar com alguém quente. O Ritchie, por exemplo".

    By Anonymous Anônimo, at 4:01 PM  


  • hahaha

    e ele falava também da "escritora evelyn waugh" também, é? uf.

    abraço

    By Anonymous Anônimo, at 4:18 PM  


  • Este comentário foi removido por um administrador do blog.

    By Anonymous Anônimo, at 4:18 PM  


  • Mais ou menos por essa data, o memorável mestre Sansão recebeu o projeto de um especial de TV sobre quadrinhos. Sorriu calorosamente para os aluninhos, meio limpando o bigode (sim, ele tb usava) de alegria, e logo ofereceu seus préstimos (pq ele era muito interativo tb). "Vocês sabem que a linguagem dos quadrinhos vem da fotonovela, né? Então, minha prima tem a coleção completa de Sétimo Céu, eu posso arranjar..."

    By Anonymous Anônimo, at 4:21 PM  


  • hahahahahahaha

    eu nem faculdade de comunicaçao fiz e tenho algumas historias pra contar.

    como o dia em que o professor de historia dormiu durante a apresentaçao de um seminario.

    no semestre anterior, em outra turma, o mesmo ser tinha saido durante uma apresentaçao pra ir ao banco. "bem rapidinho, viu?"

    o cara era uma figura, assim, roliça. tinha os pés mais horriveis do mundo _ se gargulas tiverem pés, acho que sao mais ou menos daquele jeito... _ e veio em um terço das aulas de papete! um horror, passei a sentar-me mais atras apesar da minha desatençao so pra nao ver aquelas unhas feias e tortas!

    e ele tinha uma mania de passar vistando a leitura dos alunos. entao éramos obrigados a investir $ nas fotocopias e livros indicados e sublinhar aleatoriamente as cinco ou seis primeiras paginas de cada capitulo pra nao perder o tal ponto de participaçao. so faltava carimbo do mickey de "muito bom", pato donald para "parabens" e peninha para "regular".

    fechei essa matéria com 9,5, apesar de ter tido uma discussao com o professor _ ele tinha um ego tao grande quanto sua barriga.

    porem, como ainda nao acabei a faculdade, nao posso dizer que o referido professor foi professor substituto do departamento de historia da pontificia universidade catolica de sao paulo e atualmente da aulas de historia da gastronomia na anhembi-morumbi.

    ops...

    By Anonymous Anônimo, at 5:19 PM  


  • pois é... inesquecível para mim foi aquela demonstração de macheza que ele deu diante de uma das maiores otoridades atuais da Folha de S.Paulo... ela, que tinha lido todas aquelas apostilas - cujo conteúdo informava que para adentrar o departamento administrativo do SBT era preciso usar crachá amarelo - não se conformou com o fato de não poder chegar atrasada à aula. Oh, nunca me esquecerei da guerra de egos entre aquelas duas mentes privilegiadas...

    By Anonymous Anônimo, at 2:12 PM  


  • Realmente, foi bastante frustrante essa reversão de expectativas. Depois de estudar loucamente para entrar na ECA, em uma das minhas primeiras aulas, tive um professor magnífico, que discorreu e escreveu sobre "Cofúncio" e "Dotoievski". triste. muito triste.

    mas jesus amado, misturar alquimista com alienista é de f....

    By Anonymous Anônimo, at 3:12 PM  


  • Também, com este nome (SANSÂO), só podia ser um "forte" professor! Gigante pela própria natureza. Agora, usar chapéu safari em sala de aula... sai de baixo!

    By Blogger Claudio Costa, at 12:33 PM  


  • Cláudio,
    O chapéu era o complemento perfeito para o Sansão. Suas aulas eram inesquecíveis. Pena que eu não tenha mais as anotações de suas palestras sempre inteligentes. Se eu tivesse, eu as publicaria para as novas gerações terem uma idéia de quem foi Sansão
    Um abraço,
    Marcos

    By Blogger Marcos Matamoros, at 1:16 PM  


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